O surgimento da pandemia do Covid-19 traz ao mundo contemporâneo um desafio que não havia sido enfrentada nesse século. A necessidade de solidariedade e das incessantes pesquisas científicas ressaltam, de modo muito claro, a importância desses valores que vêm sendo tão atacados no Brasil dos últimos tempos.
Da experiência colhida de países que estão lidando com a doença já desde momento anterior ao Brasil, se destaca a necessidade de isolamento social e de testagem massiva, justamente para evitar que pessoas doentes contaminem outras até então saudáveis.
Acontece que, ao contrário de outros momentos em que pandemias assolaram o mundo, a capacidade de vigilância e controle hoje possíveis sobre as pessoas se encontra em patamar nunca visto.
Vive-se hoje, como afirma Shoshana Zuboff, na sociedade do capitalismo de vigilância que, nas palavras da autora “se qualifica como uma nova lógica de acumulação, com uma nova política e relações sociais que substituem os contratos, o Estado de direito e a confiança social pela soberania do Big Other. O mundo, especialmente ao longo da última década, foi moldado para extrair dados dos usuários da Internet em escala massiva. Estes dados, reunidos e processados através do que se convencionou chamar de Big Data, que permite a obtenção de informações e o poder de influenciar condutas, em escalas até o presente momento ainda não inteiramente esclarecidas.
Assim, os dados pessoais são transformados em importante ativo comercial das grandes empresas de tecnologia do mundo, com o claro objetivo de obtenção de capital, além de outros até o momento não tão claros assim.
Há imensa disparidade informacional entre os que fornecem os dados e aqueles que deles se apropriam. Embora muitos sujeitos, em abstrato, indiquem se preocupar com a proteção de dados pessoais, na prática essa preocupação muitas vezes não se reflete, por razões das mais diversas, incluso aí o desconhecimento sobre a real extensão de que dados estão sendo coletados ou para que fim serão utilizados. Este momento do Covid-19 tem servido para jogar algumas luzes sobre essas questões.
Correm as notícias das mais diversas práticas de monitoramento para tentar identificar e isolar os infectados com o novo vírus, realizadas em diversos países. Na China, ponto inicial da pandemia, são utilizados drones, tecnologia de reconhecimento facial, scanners infravermelhos, além da implementação de aplicativo para classificar as pessoas de acordo com o risco de contágio, sendo tal informação transmitida às autoridades competentes.
A Coreia do Sul, por sua vez, rastreia os celulares dos usuários para criar um mapa que fica disponível publicamente para que todos cidadãos possam consultar por onde passaram as pessoas infectadas. Diversas outras medidas de monitoramento, em maior ou menor grau das acima narradas, já foram adotadas também no Irã, Israel, Taiwan, Áustria, Polônia, Bélgica, Alemanha e Itália.
Para Byung-Chul Han, China e Coreia do Sul, por exemplo, adotaram práticas de vigilância em geral mais pesadas e com maior aceitação por parte da população do que suas contrapartes ocidentais. Para o autor, isso se explica, em parte, por conta de que, ao contrário da cultura ocidental, a oriental seria mais voltada para o coletivo do que para o individual, sem que isso necessariamente indique se tratar de uma cultura com menor grau de egoísmo.
No Brasil, bem recentemente, uma empresa nacional, que trabalha com geolocalização, e da qual provavelmente a maior parte dos leitores jamais ouviu falar, se ofereceu para auxiliar no monitoramento durante a pandemia e já está sendo utilizada pela prefeitura de Recife com tal intuito. A referida empresa declarou que atualmente 60 milhões de smartphones carregam algum app com seu algoritmo, que os permite dizer onde cada uma dessas pessoas está, com uma margem de erro de dois a três metros.
Também no Brasil, o Governo Federal já anunciou seu interesse na adoção de medidas de monitoramento de celulares, similares às realizadas na China, o que encontra, inclusive, alguns óbices legais. Por enquanto, de acordo com o SindiTelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal), dentro de cerca de duas semanas deverá começar o repasse de dados de quase 220 milhões de aparelhos celulares, “com um dia de atraso de modo aglomerado, estatístico e anonimizado, a partir da coleta de informações por quase cem mil antenas”.
Estes exemplos acabam por remeter ao primeiro ponto: o antes. A pandemia do Covid-19 ajuda a mostrar ao mundo o que já vem sendo analisado por diversos pesquisadores: as dimensões de vigilância e monitoramento a que as pessoas estão sendo (real ou potencialmente) submetidas, principalmente a partir dos seus smartphones, ultrapassa em muito o que normalmente são capazes de imaginar quando clicam em um “aceito os termos de uso e privacidade” de um aplicativo qualquer.
É verdade que agora, ou seja, no durante, boa parte da população coloca essa preocupação em segundo lugar. A luta coletiva pela saúde, faz com que o comportamento de aceitação quanto ao monitoramento e vigilância se torne mais forte. Medidas como as acima elencadas, que são extremas, soam como medidas razoáveis em um tempo de anormalidade.
No Brasil a lei que se destina à regulamentação da matéria de proteção de dados pessoais é a Lei n. 13.709/2018, conhecida Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Importante destacar que a referida Lei se encontra em período de vacatio legis, porém, a despeito de ainda não estar em vigor, será utilizada como parâmetro para algumas análises, especialmente por se considerar que as consequências dos tratamentos de dados realizados agora impactarão em reflexos para o futuro.
Na LGPD os dados pessoais relacionados à saúde, que estão sendo coletados para o combate à pandemia, são classificados como dados pessoais sensíveis.
Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:
(…)
II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; (grifo nosso)
Estes dados pessoais sensíveis, nos termos dos arts. 11 a 13 da LGPD, recebem grau ainda maior de proteção do que os dados pessoais que não se encaixam em tal categoria. Isto se dá justamente por conta da natureza personalíssima ou de maior potencial de risco ao seu titular se utilizados de maneira indevida. Informações sobre a saúde, opinião política e orientação religiosa de um indivíduo, apenas para exemplificar algumas das elencadas, podem ser utilizadas de forma preconceituosa e excludente.
Como adverte Yuval Harari, o esforço na coleta de dados para o combate à pandemia pode levar a novos níveis de vigilância. Se antes um simples movimento do dedo, dando um like, poderia servir identificar o tipo de preferência do sujeito (over the skin), pode ser que se pretenda agora identificar até mesmo a temperatura e pressão sanguínea do sujeito a partir do próprio dedo (under the skin), o que acabaria por inaugurar um padrão ainda mais agressivo de monitoramento, conhecimento e controle.
O entendimento sobre a necessidade de proteção desses dados pessoais sensíveis nos leva ao último ponto desse texto: o depois. É que esta crise irá passar, mas o que for feito ao longo dela pode ter reflexos bem mais duradouros. Sobre tal, vamos nos ater a dois problemas.
O primeiro deles é que a coleta desses dados pessoais, ainda que se realize sua anonimização, o transformando em dado anonimizado, que, nos termos da LGPD, “é dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”, as garantias de tal proteção têm se mostrado falhas. Os processos de anonimização, do modo como são feitos atualmente, acabam por permitir em diversos casos que se reidentifique o usuário de quem os dados foram extraídos. Então, mesmo tratamentos feitos de forma anonimizada, buscando preservar a privacidade e a proteção dos dados pessoais dos sujeitos, para o combate à pandemia, podem vir posteriormente a serem vinculadas aos seus respectivos titulares.
O segundo problema, talvez ainda maior, diz respeito ao que será feito, depois que a crise acabar, com esses sistemas de tratamento de dados montados em todo o mundo para combater a pandemia.
Não pode essa grave crise mundial servir como justificativa para montar um sistema de vigilância e monitoramento, por parte de empresas e governos, ainda mais severo sobre os cidadãos. A preocupação sobre como se dará o uso desses dados e dos seus sistemas de tratamento no futuro se agrava, principalmente, quando se pensa em governos que tendam ao autoritarismo. Esta excepcional capacidade de monitoramento, somada a poderes especiais que têm sido dados a governantes em alguns países, podem, inclusive, trazer prejuízo à própria democracia.
Cidadãos extremamente monitorados podem encontrar dificuldades até mesmo para a liberdade de expressão e para a manutenção da vida privada, direito que, como o próprio nome diz, é um dos pilares da ideia de Direito Privado. Uma “polícia do pensamento”, muito mais eficaz do que aquela descrita por George Orwell, em sua clássica obra “1984”, é realidade já palpável. Que com isso em mente, as escolhas do momento sejam feitas com sabedoria, para que após a pandemia ainda tenhamos um mundo em que gostaríamos de viver.
Fonte: Conjur
Autor do artigo: Maurício Requião é advogado, doutor em Direito pela UFBA. Professor de Direito Civil na UFBA e Faculdade Baiana de Direito.